O progresso chega ao sertão do Piauí

OESP, Vida, p. A21 - 03/03/2005
O progresso chega ao sertão do Piauí

Marcos Sá Corrêa

Ponha-se no lugar da arqueóloga Niède Guidon. Ela nasceu em São Paulo e formou-se na França, mas fez tudo o que pôde nos últimos 40 anos para ir parar onde parou. Ou seja, no sertão piauiense. Mais precisamente, em São Raimundo Nonato, a 530 quilômetros de Teresina. Chegou lá por um atalho inédito, seguindo os traços mais antigos deixados pela mão do homem no continente americano.
Achou 600 e tantos sítios com pinturas rupestres nas cavernas e lapas da Serra da Capivara, criando um museu a céu aberto preservado entre os últimos retalhos de mata atlântica e caatinga no Piauí. Descobriu também que essa simbiose muitas vezes milenar entre o tesouro ambiental e o patrimônio arqueológico estava com os dias contados. Onde encontrou a mata atlântica há menos de 30 anos, ela hoje esbarra na caatinga. E, onde havia caatinga, agora pisa num chão cediço de areia estéril.
O Parque Nacional da Serra da Capivara, criado em 1979, é produto de sua teimosia. Depois de instituído, ele continuou durante anos no papel, que não é lugar para uma reserva de 129 mil hectares, até em 1991 um convênio com o Ibama entregar-lhe a tarefa de efetivar o parque, embora a militância ambiental não estivesse originalmente em seus planos.
Não estava, mas foi tomando conta de sua rotina numa sucessão de crises sem fim. Ela também não pretendia se meter em assistência social. E não teve outro remédio senão tratar desses assuntos. Fez escola, curso de alfabetização, posto de saúde, programa de apicultura para a produção de mel silvestre e até projeto de faculdade para formar em hotelaria e turismo os moradores da vizinhança.
Nem assim o parque se livrou da má vontade geral. Foi cercado por posseiros, intitulando-se quilombolas. Atrás deles, vieram os sem-terra. Eles põem fogo no mato e os incêndios destroem pinturas pré-colombianas. Na vanguarda dos assentamentos, chegaram os políticos, os comerciantes e até a Diocese de São Raimundo Nonato, erguendo casas de campo em terras do governo. Essas terras deveriam ligar, através de um vale arborizado, a Serra da Capivara ao Parque Nacional da Serra das Confusões. Mas, invadidos como estão, separam. E era por esse caminho que escapavam para as fontes perenes da Serra das Confusões os veados, os tamanduás, os tatus e até as onças da Serra da Capivara, nas longas estiagens que ali podem durar cinco anos.
Há sítios de lazer até no leito seco do Rio Piauí. Neles, serve-se carne de caça em beira de piscina, em churrasco de fim de semana. Para abastecê-los, os caçadores invadem a Serra da Capivara com espingardas e armadilhas. Apanhados pelos guardas, acabam absolvidos por sentenças populistas, sob alegação de que a população tem o direito de caçar para comer. Na terra natal do Programa Fome Zero cesta básica tem tatu. Guaribas, a cidade onde o programa nasceu, fica ao pé da Serra das Confusões. Uma igreja abriu os alto-falantes na cidade, pregando que Deus fez a terra para o uso do homem. Logo, defender os bichos do parque contraria a lei divina.
Como se a bagunça local não bastasse, acaba de baixar sobre São Raimundo Nonato a longa mão de Brasília. O Incra resolveu assentar definitivamente os invasores entre os dois parques. E, como está com a mão na massa, promete regularizar de quebra as casas de campo. Se isso acontecer, Niède Guidon ameaça extrair do parque o acervo arqueológico antes que ele acabe. Aí, sim. Vai haver escândalo. Sempre há escândalo quando alguém no Brasil quebra a rotina.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 03/03/2005, Vida, p. A21
UC:Parque

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Serra da Capivara
  • UC Serra das Confusões
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.