Flagelo do sertão

CB, Brasil, p. 10-11 - 19/09/2007
Flagelo do sertão
A pior seca em 24 anos atormenta 137 dos 223 municípios do Piauí. Há cinco meses sem chuvas, um milhão de pessoas sofrem

Paloma Oliveto
Enviada especial

Quando os angicos e mandacarus começam a florir, o vaqueiro Salvador Vaz da Costa, 68 anos, sabe que é chuva na certa. Há cinco meses, não há sinal de flor no sertão piauiense. É tudo cinza e marrom - cor da terra rachada, onde antes havia água. Na pior seca que assola o estado desde 1983, a desolação toma conta de 137 municípios do semi-árido, mais da metade do Piauí, atingindo pelo menos 1 milhão de pessoas. Na região de São Raimundo Nonato, na Serra da Capivara, os açudes secaram. Os poucos que restam devem desaparecer nas duas próximas semanas.

A ajuda é vagarosa como o burro que leva no lombo os barris e galões recém-abastecidos por Salvador no que restou do poço de Capelinha, povoado de Coronel Dias, a 548km da capital, Teresina. Só em agosto os primeiros carros-pipa do Exército começaram a chegar para encher as cisternas. Nem todos os lugares devastados pela estiagem, porém, serão contemplados: o governo federal reconheceu a calamidade em apenas 89 casos. Os prefeitos alegam que há excesso de burocracia para conseguir o socorro.

Já a Secretaria de Defesa Civil do Piauí diz que, sem os recursos federais, é impossível combater o flagelo da seca. Em junho passado, o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira, anunciou que R$ 3 milhões seriam liberados para alugar carros-pipa. O dinheiro não teria chegado ainda ao destino. Até agora, o que 18 municípios receberam foram cestas básicas, com arroz, feijão, açúcar, leite em pó, óleo e farinha. Quem pode, paga pelo serviço de "pipeiros", que buscam água em mananciais e barragens e cobram até R$ 80 pelo galão, suficiente para um mês. Poucos podem se dar ao luxo. O valor corresponde a um quarto da aposentadoria de Salvador. Para ele, não resta alternativa, se não percorrer 24km por dia sob um calor que ultrapassa 33oC. "Agora é esperar por Deus", diz. E pelas flores dos angicos e mandacarus.

Pequeno, magricela, chinelos velhos nos pés, Micael Ribeiro da Silva, 11 anos, acha divertido sair da roça onde mora para buscar a água de gosto ruim em uma cisterna de Garrincho, vilarejo de São Raimundo Nonato. Só não gosta da temperatura alta e da falta de chuva. "É ruim, né? Um calorão, comendo a gente." Essa é a primeira vez que Micael vê tanta secura. "No ano passado, a água sangrou. Aí nossa cisterna encheu e a gente não precisou buscar fora", conta o irmão mais velho, Igor, 18. Agora, o recipiente está vazio, assim como os de outras 100 famílias que moram no local.

São apenas três pontos que ainda têm capacidade de abastecimento. Enquanto o jumento disputa com os porcos a água da lama próxima à cisterna, Igor diz que os dois tambores enchidos por dia são para beber, lavar roupa, tomar banho, e matar a sede dos animais. No roçado de 7 hectares, moram oito pessoas: oito irmãos, pai e mãe. E mais seis vacas, dois cavalos, uma égua e um jumento. A estiagem acabou com a plantação de feijão e milho. "Mandioca eu tentei, mas não situou." Tampouco o restante. "Este ano, não deu nada." Para que os animais não morram de fome, a família gasta R$ 90 por mês com sacas de milho. O dinheiro sai dos R$ 80 recebidos pelo pai, que tem a perna amputada, e dos R$ 100 do programa Bolsa Família. "Tem hora em que os bichos sentem falta de comida. Às vezes, a gente sente também", conta o rapaz.
O produtor rural Alberto Gonçalves Bispo, 55 anos, está furioso com as onças que, só neste ano, mataram 40 cabeças de gado de sua criação. E com a seca, que está prestes a matar o resto. Ele mora na Fazenda Pés do Morro, vizinha da Serra da Capivara. Está bravo também com os deputados estaduais, federais, os prefeitos e até ministros que procurou em Brasília no ano passado, quando se deslocou do sertão nordestino até a capital federal, em busca de socorro.

Foi ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e da Integração Nacional. Ouviu promessas, mas nem energia elétrica chegou ainda à casa do produtor. Agora, também falta água. O cavalo e os jumentos se saciam em um açude que, pelos cálculos de Alberto, não dura até o fim do mês. Há três anos, conta, a água era tanta e tão branquinha que o povo bebia ali mesmo. Atualmente, só os animais se arriscam no açude lamacento.

"Não tenho tempo nem de almoçar. Passo o dia inteiro buscando e levando água. São cinco viagens, de 8km cada uma", lamenta. Na propriedade de 80 hectares, costumava plantar o suficiente para colher 200 sacas de milho e 50 de feijão. "No ano passado, foram só sete sacas de feijão. Nesse, não deu nada. Até o maxixe morreu todo." O medo de Alberto é de que o gado morra também. "Noutro dia, foi-se um jumento meu. O bicho berra quanto está com sede."

O produtor chegou a pagar R$ 35 para um "pipeiro", mas, com o avanço da seca, o preço subiu para até R$ 100. Desistiu da compra e voltou a depender dos jumentos que resistiram à estiagem para buscar água no açude. Alberto está bravo porque, sem poder produzir, pequenos agricultores entram no Parque Nacional da Serra da Capivara, roubam tatus e acabam presos, pois o local é uma reserva protegida. "Se forem prender todo mundo que entra no mato para arrumar o que comer não vai ter cadeia que caiba. Nunca tive ajuda nenhuma de governos. Só dos meus braços", diz o produtor, enquanto enche mais um pote que logo será carregado no lombo do jumento.
No que um dia foi açude, o cavalo tenta buscar água. Mete o focinho na terra rachada e não encontra nada. Só o pó seco, que o animal mastiga desesperadamente. Há meses, a alimentação resume-se a folhas de palmeira, capim e mandioca. É o que ainda pega na roça de Salvador Vaz da Costa, 68 anos, morador de Capelinha, povoado de Coronel Dias. Sem chuva, a comida rareou. A água está quase no fim. Todos os dias, Salvador faz duas viagens de 6km para abastecer os barris em um poço. Não tem forças para levar tambor até manancial. "Queriam me cobrar R$ 80, mas eu não posso. Sou aposentado, ganho um salário (salário mínimo) por mês", diz.

No semi-árido nordestino, Severino procura por água tanto quanto o cavalo, companheiro nas andanças sertanejas. "A gente vê se tem em qualquer buraco." O vaqueiro garante que, por aqueles cantos, só chove quando Deus quer. "Ainda vai chover muito nesse ano", palpita. Mas a Secretaria de Defesa Civil prevê que, nos próximos meses, a estiagem só vai aumentar.

Foi assim o ano todo: Maria Bela Ferreira dos Santos, 49 anos, tentando arrancar roçado da cinza. "No inverno (dezembro, janeiro e fevereiro, quando chove no sertão), minhas mãos ficaram duras de tanto capinar. Quando deu o tempo de pegar os legumes, não veio nem caroço", conta. Milho, feijão, abóbora e melancia plantados se perderam. Os R$ 75 do programa Bolsa-Família são pouco para sustentar 15 pessoas, entre marido, mãe, filhos, netos e genros. "Tá difícil eles conseguirem emprego. Não conseguem nem bico."

Sem ter como comprar água, Bela, que mora nos arredores de São Raimundo Nonato, depende que os filhos encontrem uma cisterna cheia para "pegar de favor". Pede água para os vizinhos e para São José: "Meu divino São José, eu venho lhe visitar, também vim pedir uma esmola se assim vós queira (sic) nos dar", reza. Por enquanto, a esmola não veio.

Para dona Miúda, mãe de Bela, essa é apenas uma das muitas secas enfrentadas. A mulher, de 81 anos, era criança na grande estiagem de 1932. "O povo não aquietava. Ficava pra riba e pra baixo buscando água. Tudo para morrer de sede e de fome", recorda. Nas lembranças da infância está a visita de João Virgolino, o cangaceiro Lampião. "Ele apareceu com o bando na minha casa e pediu licença para dormir lá. Todo mundo montou a rede. A gente dormia no chão. Nunca me esqueço da mulher dele na rede. O nome dela, acho que era Maria", conta dona Miúda, referindo-se a Maria Bonita ("Não era feia, mas era muito sequinha", diz).

Naquela época, a estiagem castigou muito mais o sertanejo, acredita a mulher. Para Bela, que não conheceu Lampião nem a seca de 1932, a de 2007 é a pior de todas. "A vida aqui nesse interior é dura. Ninguém nem lembra do Piauí, não. A gente é tudo esquecido", sentencia.


Recursos demoram. Chuvas, só em novembro

Hércules Barros
Da equipe do Correio

Os angicos e mandacarus devem demorar a florescer no Piauí. Se depender de São Pedro, as previsões são nada animadoras. Possibilidades de chuva só a partir do início de novembro, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Apesar do ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, ter anunciado em junho a liberação de pouco mais de R$ 3 milhões para amenizar a estiagem no estado, os recursos até hoje não chegaram até quem passa fome e sede no semi-árido.

As ações suplementares da Secretaria Nacional de Defesa Civil passam longe dos 137 municípios que clamam por ajuda. Para se ter idéia da discrepância, apenas dois municípios do Piauí foram incluídos entre os 285 atendidos na Operação Carro Pipa do governo federal em todo o país. "O estado vem trabalhando para ampliar o atendimento, tão logo chegue em nossas mãos a necessidade", justifica o secretário nacional de Defesa Civil, Roberto Costa Guimarães.

No momento, o governo reconhece calamidade em apenas 14 municípios piauienses. Outros 85 estão em fase de reconhecimento. Há duas semanas, também foi autorizado o envio de 230 toneladas de alimentos para 18 cidades do estado. "Não é só noticiar que está precisando de ajuda para que o governo mande recursos. A situação de calamidade é reconhecida pelo governo depois de decretada pelo prefeito e homologada pelo estado", afirma o secretário.

De acordo com Guimarães, os R$ 3 milhões anunciados pelo ministro para o estado estão sob a responsabilidade da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). "O processo está em fase final de execução", afirma. As previsões da superintendência regional da Codevasf no Piauí são mais modestas. Os recursos do governo são para a construção de poços artesianos. A previsão é de que as obras comecem em dois meses.

Em Brasília, a assessoria de comunicação da Codevasf justifica a morosidade. De acordo com a companhia, a verba era para celebrar convênios com o estado, mas o governo do Piauí não conseguiu sair da inadimplência. Sem poder selar convênio com o Piauí, a companhia iniciou um processo de licitação que depende de licença ambiental prévia, prevista para sair sexta-feira. Só depois desse trâmite é que será publicado o edital de licitação da obra, que deve levar mais 45 dias para ser iniciada. Segundo a Codevasf, as obras estão previstas para 128 municípios em estado de emergência.


Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta?

Será que a água destes poços é toda aqui consumida pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas? será que quando chegar o rio da nova invernia um resto de água no antigo sobrará nos poços ainda?

E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)

Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza

Os trechos que ilustram essa reportagem são de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto

CB, 19/09/2007, Brasil, p. 10-11
Caatinga

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