Escavações no Piauí podem revelar hiato da ocupação humana nas Américas

OESP, Vida, p. A24 - 22/08/2010
Escavações no Piauí podem revelar hiato da ocupação humana nas Américas
Ciência. Antropólogos se perguntam como teria ocorrido a suposta troca de uma população pré-histórica por outra no continente. Esqueletos achados no Parque Nacional da Serra das Confusões, que datam entre 5 mil e 8 mil anos atrás, podem fornecer resposta

Eduardo Kattah

Sepultamentos descobertos no Parque Nacional da Serra das Confusões (PI) podem reforçar a busca por respostas para um hiato que marca as pesquisas sobre a ocupação humana nas Américas.
Há décadas, antropólogos se perguntam como teria ocorrido a suposta substituição de uma população pré-histórica por outra no continente. A tese surgiu com os estudos do crânio de Luzia, descoberto nos anos 1970 e considerado como sendo da primeira brasileira, além de o primeiro fóssil humano das Américas.
A jovem mulher, que viveu há aproximadamente 11 mil anos na região cárstica (tipo de relevo caracterizado pela corrosão de rochas) de Lagoa Santa (MG), tinha feições negroides e era, provavelmente, descendente da primeira migração da Ásia, com características distintas dos índios modernos.
Equipes da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) empreenderam prospecções em 2008 e 2009, que resultaram no cadastro de 110 sítios arqueológicos. Em dois deles - Toca do Enoque e Toca do Alto da Serra do Capim -, escavações revelaram esqueletos de adultos e crianças e fragmentos de ossos humanos queimados.
A importância da descoberta está nas primeiras datações, obtidas recentemente: entre cerca de 5 mil e 8 mil anos atrás. É justamente durante essa faixa cronológica que os pesquisadores acreditam que uma população com as características mongoloides dos povos indígenas brasileiros passou a habitar o continente.
Os estudos mais avançados nessa direção estão sendo coordenados por professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a partir de esqueletos encontrados no sítio Caixa D"Água, em Buritizeiro, no norte do Estado. Descoberto no início dos anos 1980, o sítio teve a exploração encerrada em 2007. De lá foram retirados 45 esqueletos adultos, encaminhados para o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (LEEH/USP), responsável por indicar as características morfológicas desses antigos americanos.
"Quase que não há esqueletos conhecidos no Brasil nessa faixa (entre 5 mil e 8 mil anos atrás). Existem esqueletos muito mais antigos, que são aqueles da Lagoa Santa, geralmente entre 8 mil e 10 mil anos, com uma morfologia diferente dos índios atuais", observou o arqueólogo francês André Prous, uma autoridade no assunto. No início dos anos 70, Prous integrou a Missão Franco-Brasileira que desenterrou na Lapa Vermelha, na cidade de Pedro Leopoldo (MG), o crânio de Luzia. "Buritizeiro e a Serra das Confusões estão preenchendo esse vazio."
A arqueóloga Gisele Daltrini Felice, uma das responsáveis pelas descobertas no sudoeste do Piauí, ressalta que serão realizados os estudos específicos de antropologia física em todos os esqueletos humanos encontrados. Análises de DNA estão sendo realizadas na França para a verificação da existência entre relações de parentesco dos diversos indivíduos encontrados.
Os recentes trabalhos arqueológicos fazem parte de uma extensão do projeto Origem e Evolução Migratória dos Primeiros Grupos Humanos na região, antes concentrado no Parque Nacional da Serra da Capivara. Nesse parque, na Toca dos Coqueiros, foi localizado um esqueleto com as mesmas características físicas de Luzia, datado entre 9 mil e 11 mil anos atrás.
"A importância dos achados está na possibilidade de verificação do tipo físico, além de se obter dados sobre diferentes rituais funerários tanto para um mesmo grupo como para identificar diferentes núcleos que ocuparam as Serras da Capivara e das Confusões", disse Gisele. "O interessante é que na Serra das Confusões o tipo de enterramento é muito diferente do que a gente tinha encontrado até agora."
São Francisco. Os trabalhos, sob a coordenação de Niède Guidon - outra autoridade em pré-história sul-americana -, projetam uma fronteira de pesquisas na Região Nordeste do País. A partir do sítio de Buritizeiro, os cientistas esperam consolidar nos próximos anos um conjunto de importantes informações a respeito da evolução do homem pré-histórico no chamado Brasil Central (região do Cerrado, que compreende o centro-norte de Minas, o sudoeste baiano, Tocantins e Goiás) e no povoamento do Vale do Rio São Francisco durante o período médio do holoceno (época geológica que começou há cerca de 11 mil anos e se estende até hoje).
Trabalhos interdisciplinares pretendem reconstruir não só as características físicas, mas o ambiente, os costumes, as técnicas e o cenário onde vivia o Homem de Buritizeiro - como já foram apelidados os esqueletos encontrados na cidade mineira, apesar de os pesquisadores torcerem o nariz para a denominação.
Vestígios encontrados nas sepulturas indicam que essa população, que provavelmente vivia acampada à margem do São Francisco, já dominava rústicas técnicas de processamento de alimentos. Nos sepultamentos, as ossadas estavam acompanhadas de materiais líticos (rochas lascadas ou polidas) e pontas feitas de ossos de mamíferos. A suspeita dos cientistas é que, além de caçadores, coletores e pescadores, os habitantes dessa época também dominavam técnicas de navegação.

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100822/not_imp598513,0.php


Sepultamentos tinham adorno feito com dente de onça
Na Toca do Enoque foram localizados três enterramentos, sendo dois individuais e um coletivo

Eduardo Kattah

Na Toca do Enoque, no Parque Nacional Serra das Confusões, três sepultamentos foram evidenciados pelos pesquisadores. Dois eram individuais e o terceiro, coletivo. Neste último havia pelo menos 12 indivíduos.
De acordo com a arqueóloga Gisele Felice, uma das responsáveis pela descoberta, entre as principais características desses funerais está a grande quantidade de adornos elaborados a partir de dentes caninos de onças e raposas e de ossos de cervídeos e aves. A cronologia para esses vestígios está entre 6.220 e 8.270 anos atrás.
Conforme a arqueóloga, no sítio Toca da Serra do Alto do Capim, muitos fragmentos de ossos humanos queimados foram encontrados, o que indica uma possível incineração dos corpos na camada mais profunda do abrigo.
Um sepultamento foi realizado em uma cova forrada por capim. O corpo estava envolvido em uma espécie de fibra trançada, que poderia ser uma rede ou uma esteira. As datações obtidas para esse sítio foram de 6.180 anos e 8.590 anos atrás.
Rede de esgoto. O sítio Caixa D"Água/Buritizeiro, em Minas Gerais, foi descoberto em 1983, durante as obras para a instalação de rede de esgoto em um terreno no centro da cidade de Buritizeiro, localizada no norte do Estado.
Entre 2005 e 2007, foram exumados 45 esqueletos adultos do sepultamento coletivo. A datação indicou que os indivíduos viveram entre 5 mil e 6 mil anos atrás, no período do Holoceno Médio. Outros esqueletos foram preservados para estudos futuros.
Supostas oferendas e instrumentos encontrados nas sepulturas sugerem uma "indústria" de artefatos feitos à base de seixos - pedregulhos encontrados nas margens dos rios.

Cronologia
Mudança populacional
11,5 mil a 10,5 mil anos
Luzia Brasileira mais antiga conhecida tinha feições negroides
8 mil a 6 mil anos atrás Sítios
Na Serra das Confusões (PI) e em Buritizeiro (MG)
5 mil anos
Índios modernos
Com características mongoloides

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População foi descrita pela 1ª vez no século 19

Eduardo Kattah

A população pré-histórica de Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, foi descrita pela primeira vez pelo dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), a partir da descoberta de esqueletos na gruta do Sumidouro, em meados do século 19.
Com base na análise do crânio de Luzia, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) lançaram uma nova tese sobre a ocupação humana no continente.
"Vamos ver se houve uma evolução morfológica - se foram os habitantes de Lagoa Santa que se transformam em população moderna - ou se aconteceu uma fusão de duas populações diferentes", afirmou o arqueólogo francês André Prous.
O estudo dos fósseis localizados indicará as características morfológicas, o sexo e a idade de cada indivíduo. Mas, para Prous, o mais intrigante é entender como o humano com características negroides deu lugar ao índio moderno.

OESP, 22/08/2010, Vida, p. A24
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