Entrevista: desenvolvimento em si não quer dizer nada, é um conceito vazio que gera sacrifício de parcelas imensas da população

Amigos da Terra - www.amazonia.org.br - 24/09/2008
Literalmente por acaso. Foi dessa forma que Maurício Torres, pesquisador do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), foi parar na Amazônia. Ele havia sido convidado para a organização de um livro sobre a região - "precisavam de alguém que escrevesse bem" - foi para lá e descobriu que era aquele o lugar no qual queria seguir sua jornada.

Atualmente ele divide seu tempo entre sua residência na capital paulista e os meses que passa na selva trabalhando com populações tradicionais (termo que ele prefere não utilizar, para não dar a conotação de atrasados a essas pessoas). Por mexer com uma questão delicada, a luta pelo direito de permanência dos moradores locais frente às disputas com grileiros ou unidades de conservação que não os consideram, Torres tem de lidar sempre com situações extremas, chegando até a sofrer ameaças.

Confira abaixo o que ele pensa sobre os problemas e atores envolvidos na questão amazônica.

Podemos começar falando da sua formação. O que você estudou e como isso te levou até a Amazônia?
Eu estudei na USP [Universidade de São Paulo] e trabalhei como editor de livros da Editora Casa Amarela, que edita a revista "Caros Amigos". Cheguei à Amazônia de certa forma por causa do jornalismo. Acabei me envolvendo com um projeto de pesquisa por escrever bem, eu daria uma redação final ao texto.

Mas você já foi jornalista?
Não e também não tinha nenhum trabalho sobre a Amazônia, o que eu tinha publicado eram artigos sobre literatura de periferia, fazia crítica literária. Ir para a Amazônia foi bastante inesperado. Fui e não voltei. Foi uma mudança de vida bastante drástica. Mas que foi surpresa, foi. No final desse primeiro projeto de pesquisa, virei orientando do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, fiz meu mestrado no Departamento de Geografia Humana da USP, por conta desse envolvimento com a Amazônia.

E como você entende que deve ser o trabalho do pesquisador da região amazônica?
Aquele que trabalha para desenvolver adubo para sojeiro selou um compromisso com um determinado grupo, com uma determinada classe. O conhecimento dele é político na medida em que altera relações de poder estabelecidas. Peguemos um caso extremo, como a tecnologia nuclear e vai dizer que a ciência não é política? Dominar a tecnologia nuclear causa um deslocamento numa hierarquia política de uma forma muito clara. Se o saber é político, o conhecimento que geramos na academia também tem uma apropriação política.

O pesquisador deve ter claro quem vai se apropriar do conhecimento que ele está produzindo, sem nenhuma hipocrisia de higienismo científico. No meu trabalho, construir uma relação de confiança com as populações da floresta é o mais difícil. Trabalho em situações de conflito. Essa gente vive diante de formas de terror e violência absurdas. O que faço? Mostro de forma muito clara de que lado eu estou.

Por que digo que essa é sempre a parte mais difícil do trabalho de pesquisa na situação de conflito? Porque - sem dúvida alguma - faço parte do mundo do expropriador daquela gente: vestimos-nos igual, falamos igual (muitas vezes com o mesmo sotaque), fizemos as mesmas faculdades, enfim, somos paridos pelo mesmo mundo. Eles têm todas as razões para não confiarem em mim. Entendo que, se vamos lá e nos beneficiamos das informações locais, do saber deles para alimentar nossas teses, artigos e trabalhos. É mais do que justo que se retribua com aquilo que temos para oferecer, que é a disponibilização de um conhecimento específico para que possa colaborar na mobilização do grupo numa instância política frente a qual eles possam ter pouca experiência ou trânsito. Não tem nenhum assistencialismo, nenhuma bondade nisso, muito menos aventura. É trabalho.

Toda pesquisa, em uma instância ou outra, gera seu efeito social. Se você trabalha para o desenvolvimento de uma determinada serra, está selando um compromisso com que vai usá-la. Essa aliança que se firma com aquele que vai se apropriar do seu saber tem que ser algo muito claro, honesto, até para que você possa ser criticado. Para isso, é muito importante que eu deixe absolutamente claro de qual ângulo eu estou olhando para determinada questão. A construção de uma relação de confiança e empatia com a população vitimada pelo conflito, para mim, é pressuposto básico. Digo até que a pesquisa nas situações de conflito da Amazônia é um compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa.

Entendo também que a pesquisa na área de ciências humanas, principalmente nas situações de conflito não pode se limitar ao modelo onde o pesquisador ocupa o papel de sujeito, como agente das ações de perguntar e registrar, de buscar saber e o grupo estudado se limita a ser objeto da pesquisa. Procuro colocar-me, também, na posição de objeto, na medida em que posso servir de mídia para levar a demanda do grupo a outros planos de combatividade. E isso inclui, muitas vezes, apenas dar visibilidade para o conflito. Dar visibilidade política à população estudada.

E foi essa consciência de classe que te fez escolher trabalhar com os povos da Amazônia especificamente e não qualquer outro tema ligado à floresta?
Não falei consciência de classe, falei compromisso de classe. É diferente. E, mais específico ainda, é um compromisso com uma classe expropriada. Não é esse compromisso que me leva a esse tipo de pesquisa e não à botânica ou zoologia. Wilsea Figueiredo, uma das maiores pesquisadoras que conheci na região é uma geneticista, trabalha com genética de macaco. E o trabalho dela está absolutamente permeado com um compromisso de classe. Isso a diferencia muito de um comum discurso de ambientalismo de mercado, no qual um grande problema é a alienação política. Ainda tem uma parte desse discurso reproduzindo a ditadura militar que dizia "é melhor entregar a floresta ao grande capital, pois esse você controla mais facilmente, vai estragar menos".

Enxerga apenas a demanda mais imediata... Nunca se questionam questões estruturais. O planeta não suporta o modelo econômico atualmente empregado, ainda assim, repete-se que não há outra solução além de encontrar a melhor maneira de poluir e destruir, ou destruir menos, que seja. Como se a humanidade já tivesse chegado ao seu clímax e não comportasse mais transformações. É o que chamo de ambientalismo de mercado: qual a forma menos destrutiva de abastecer esse modelo econômico, de fazer a apropriação capitalista da floresta? Até em certas vertentes do discurso ambientalista, toda a natureza é reduzida ao status de "recurso natural", matéria prima, e, como tal, fadada a virar mercadoria. É o discurso do "desenvolvimento sustentável" que diz como devemos prolongar o uso desse recurso pelo maior tempo possível. A impossibilidade lógica de se defender um sistema que só sobrevive crescendo em um planeta finito é resolvida com ciência e a tecnologia aparecendo como um novo deus que trará a solução para tudo.

Ia perguntar como você enxerga o trabalho das ONGs que atuam na Amazônia.
As ONGs, vamos falar das grandes, de WWF, Greenpeace, ISA, Imazon. Gosto do Isa [Instituto Socioambiental]. Ele é que melhor coaduna o lado social com o ambiental e o faz de uma maneira muito crítica. Eles têm resultados de pesquisa muito bons. Não gosto do trabalho do Imazon. Para mim, seus trabalhos técnicos, em relação à exploração madeireira no Pará, por exemplo, não pensam o suficiente no impacto social para a população que habita a floresta. Conferem uma aura, um selo científico, a interesses comerciais com os quais eu não compartilho. O Greenpeace tem uma linha midiática e estão na deles. Querem fazer barulho e são bem sucedidos nisso. O problema é que esse ruído produzido muitas vezes se refere mais ao que a entidade está fazendo do que àquilo que ao que está acontecendo propriamente dito. Não estamos agindo com os mesmos instrumentos, mas estamos do mesmo lado. Tem-se um preconceito contra ONGs, uma generalização, que é muito prejudicial. É claro que muitas se aproveitam de peculiaridades na legislação pra ter vantagens na captação de recursos, mas muitas outras são sérias. A Amigos da Terra [Amigos da Terra - Amazônia Brasileira], por exemplo, tem um trabalho de notícias, de informação, que é muito bom. Ao falar de ONGs, não se pode por tudo num saco só.

Queria falar agora sobre as políticas públicas para a região, como a Lei de Gestão de Florestas (Lei 11.284/2006), por exemplo. Não é uma maneira do governo se livrar de uma responsabilidade que historicamente não conseguiu gerir ou administrar, privatizando as florestas?
Vou falar especificamente do Pará, onde trabalho. Considero aquela situação muito importante, pois o que acontecer no Pará tende a ser reproduzido no resto da Amazônia. A terra e a floresta são disputadas pelo agronegócio internacional da madeira e por madeireiros locais. Cada um deles tem suas alianças políticas e para cada um existem instrumentos políticos que lhes conferem um carimbo de formalização às suas pretensões. As madeireiras internacionais atacam o território pela lei de gestão de florestas públicas (Lei 11.284/2006). As concessões florestais não privatizam a terra, privatizam a floresta e abrem um novo caminho preocupante, que é o acesso e o controle da terra por meio de seus recursos florestais. Não é nenhuma novidade do Serviço Florestal Brasileiro. Há tempos se faz isso com as concessões minerais. Primeiro foi o controle do subsolo, agora é por meio do acesso ao recurso florestal. Mas não deixa de ser controle territorial privatizado. E controlar terra é poder, é controlar a vida e a morte das pessoas que vivem lá.

Nunca é demais lembrar, a Amazônia é ocupada, não é um deserto humano. Porém, hoje, evito o uso do termo "privatização" para as concessões florestais. Deixo esse termo para a farra que o governo está fazendo com a distribuição das terras públicas para os grileiros aliados. Para atender os madeireiros domésticos - com quem o governo estadual está comprometido até o pescoço - foi criado algo ainda pior que as concessões florestais: por meio do que eles chamam de regularização fundiária, a União pretende privatizar em enormes módulos, de até 1500 ha, as suas terras, que são muitas na Amazônia. O controle da terra para o madeireiro doméstico não se dá por meio do serviço florestal, mas através do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], que ao invés de fazer a reforma agrária, agora, munido com uma nova Medida Provisória, se debruça com todas as forças sobre a legitimação da grilagem.

Que é a MP422...
Sim, a MP 422 que é o fim do mundo! Nem a ditadura militar conseguiu fazer isso. Desde o tempo das sesmarias, valia a máxima de apoio político em troca de terra, isso infelizmente é uma tradição, mas nunca foi tão exagerado como agora. Agora a grilagem conta com políticas publicas que a "esquenta", cria-se um aparelho legal para, em favor do grande capital, privatizar a terra ou seu controle. Essas são duas grandes políticas governamentais pro acesso a floresta hoje. Há também os interesses hidrelétricos, mineradores, que contam com uma adesão e complacência absoluta do governo federal a seus interesses. Tudo vem em detrimento dos povos que ocupam a floresta e que são os maiores responsáveis por mantê-la em pé. O que é o mais pérfido disso? Para atender os interesses dos mega projetos são sacrificados e espoliados os povos detentores de um fantástico e desconhecido patrimônio cultural, tecnológico, genético, de biodiversidade... O sacrifício dos povos da floresta amazônica, em muitos casos, são para atender aos interesses energéticos e mineradores - que estão muito ligados. Uma enorme parcela de toda energia produzida no Brasil é consumida pela fabricação de alumínio. Há anos assistimos a migração acelerada das fábricas de alumínio do 1o. Mundo inteiro para cá, o 3o Mundo. Isso porque o 1o Mundo não quer pagar o enorme passivo social e ambiental de se fabricar alumínio.

E os órgãos federais que trabalham com o meio ambiente, como você avalia a atuação deles?
O Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais] teve uma renovação dos seus quadros muito substantiva. De uma maneira geral os servidores possuem uma enorme disposição para fazer o que precisam. Mas enfrentam limitações de recursos inacreditáveis. Uma unidade de conservação com mais de três milhões de hectares na Terra do Meio, por exemplo, tem recursos irrisórios para sua gestão e monitoramento. Com relação à política do MMA, a Marina Silva saiu não tendo respondido às críticas sociais e ambientais à Lei de Gestão de Florestas Públicas e a primeira coisa que o [Carlos] Minc fez foi abraçar esse famigerado modelo. É a mesma visão empresarial que converte a natureza em matéria prima. E isso é assumido como algo positivo e até mesmo óbvio. É aquela idéia de "valorizar para conservar". Valorizar em espécie, valorar, dar preço em dinheiro.

Entendo isso como uma visão completamente equivocada. Qual o argumento dessa política? Fala-se que é um "ambientalismo realista" aceitar que a única maneira de manter a floresta em pé e fazendo com que ela dê retorno financeiro. Isso pode ser um tiro na cabeça, se o mercado mostrar que a floresta vale mais no chão, falamos o que? E essa é a política do MMA e de todo governo Lula. E esse dinheiro ainda por cima não tem como destinação a melhoria da qualidade de vida da população que mora na floresta e sim atender grandes interesses comerciais. Como se algo que não desse dinheiro, não tenha o direito de existir.

Como mudar os estigmas de que os povos da floresta são atrasados e que caminham para o nosso modo de vida?
A academia tem o seu compromisso, seu papel na reflexão crítica. Assim como a imprensa. Se as duas deixassem de reproduzir tantas besteiras já seria um grande avanço. Desenvolvimento em si não quer dizer nada, o que se entende por essa palavra hoje é um conceito vazio e perigoso que sempre acaba por ser traduzido por crescimento econômico. E pior, um crescimento que inerentemente gera pobreza.

Não existe nada tão abstrato e com um poder axiomático tão grande. É sempre entendido como algo que leva do pior para o melhor. E muitas vezes esse "melhor" é o sacrifício de parcelas imensas da população. O próprio presidente já disse que os maiores empecilhos para o desenvolvimento do país eram os quilombolas, indígenas, ambientalistas e o ministério público. O problema do Ministério Público, para o presidente, é que ele tem a obrigação de defender a causa ambiental e minorias étnicas, e fica atrapalhando o desenvolvimento. E ele tem toda razão, sempre isso será um problema o seu entendimento de "desenvolvimento".
Amazônia:Geral

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Terra do Meio
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.