As angústias da 'terra prometida' dos Carajás

Valor Econômico, Empresas, p. B3. - 24/02/2015
As angústias da 'terra prometida' dos Carajás

Francisco Góes

Canaã, segundo a Bíblia, era a terra prometida por Deus a seu povo. No sudeste do Pará, Canaã dos Carajás é o lugar escolhido por muitos trabalhadores vindos de outras regiões em busca de emprego. O município é sede do maior empreendimento da história da Vale, conhecido como Projeto Ferro Carajás S11D, que está recebendo investimentos de US$ 17 bilhões para começar a produzir 90 milhões de toneladas de minério de ferro por ano a partir do segundo semestre de 2016.
No momento em que Carajás completa 30 anos, o S11D emprega 14 mil trabalhadores envolvidos nas diferentes frentes de obras. O problema, para os habitantes de Canaã, é que, quando a mina entrar em operação, no fim do ano que vem, apenas cerca de 2,6 mil trabalhadores deverão ser aproveitados. O que fazer com os demais é a grande preocupação do prefeito Jeová Gonçalves de Andrade (PMDB).
Segundo Andrade, Canaã, com 62 mil habitantes, vive momento difícil, marcado pela chegada de trabalhadores de outras regiões, pelo desemprego (cerca de 15 mil pessoas) e pelo fato de não ter conseguido aumentar a infraestrutura e os serviços públicos na velocidade do crescimento populacional criado pelo projeto. "Canaã, na Bíblia, é a terra que emana leite e mel, mas nós ainda esperamos colher maiores benefícios", diz.


Vale avança no S11D em Canaã, mas município espera benefícios

Canaã, segundo a Bíblia, era a terra prometida por Deus ao seu povo. No sudeste do Pará, Canaã dos Carajás tornou-se também o lugar escolhido por muitos trabalhadores de outras regiões, sobretudo do Nordeste, em busca de novas oportunidades, de empregos. O município ganhou projeção nacional depois de ser escolhido pela Vale como sede do maior empreendimento da história da companhia, conhecido como Projeto Ferro Carajás S11D. Situado na serra sul de Carajás, o S11D está recebendo da Vale investimentos previstos entre US$ 16 bilhões e US$ 17 bilhões para começar a produzir 90 milhões de toneladas de minério de ferro por ano a partir do segundo semestre de 2016.
No momento que em que a Vale completa 30 anos do começo da produção de ferro em Carajás, o S11D abre uma nova fase para a empresa e para os municípios da região. O projeto está avançado. Há hoje, no total, 14 mil trabalhadores envolvidos nas diferentes frentes de obras. São 11 mil distribuídos nas tarefas de abertura da mina, que fica em área de savana dentro da Floresta Nacional de Carajás (Flona), e na montagem da usina de beneficiamento do minério de ferro, fora da floresta.
"A previsão é ter a usina de beneficiamento montada no segundo semestre de 2016, quando começaremos a fazer os testes para entrar em operação", diz Alexandre Campanha, diretor de operações do S11D. Outros três mil trabalhadores estão ocupados com a construção de um ramal ferroviário de 101 quilômetros, que exigiu a abertura de quatro túneis. Esse ramal vai se conectar à Estrada de Ferro de Carajás (EFC), que escoa a produção da Vale na região até São Luís (MA). Em meados do ano, quando a construção do ramal ferroviário atingir o pico, o número de trabalhadores nessa parte da obra vai chegar a 5 mil pessoas.
Nas obras do ramal ferroviário, o Valor encontrou o gaúcho Antonio Pac eco. Natural de Erechim (RS), ele mudou-se temporariamente para trabalhar em Canaã contratado pela empresa Toniolo Busnello, especializada na construção de túneis, uma das contratadas da Vale. "Moro em Balenário Camboriú (SC), mas vim para as obras. O emprego aqui é bom."
O problema, na visão do município, é que quando o S11D entrar em funcionamento, no fim do ano que vem, apenas parte dos trabalhadores envolvidos nas obras deverá ser aproveitada na operação. "E parte dos que não forem aproveitados vai permanecer em Canaã, o que nos preocupa", afirmou o prefeito do município, Jeová Gonçalves de Andrade (PMDB). Campanha, da Vale, afirmou que o objetivo da empresa é aproveitar na operação do S11D parte dos trabalhadores hoje envolvidos na implantação do projeto, como eletricistas e mecânicos. O número de empregos diretos na operação do S11D deve ser de 2,6 mil pessoas, das quais 2,1 mil próprias e 500 terceirizadas. Campanha disse ainda que parte dos 11 mil trabalhadores hoje envolvidos nas obras é "itinerante". Em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), a Vale faz um trabalho de formação de mão de obra, o que ajuda a aumentar a oferta de profissionais locais.
Mesmo assim, para Andrade, Canaã vive um momento difícil, marcado pela migração de trabalhadores de outras regiões, pelo desemprego e pelo fato de o município não ter conseguido aumentar a oferta de infraestrutura e de serviços públicos na mesma velocidade do crescimento populacional criado pelo projeto. "Canaã, na Bíblia, é a terra que emana leite e mel, mas nós, aqui no Pará, ainda esperamos colher maiores benefícios do S11D", diz Andrade. Segundo ele, há 15 mil desempregados em Canaã. "E todo dia chega gente aqui à procura de trabalho."
O município tem população estimada pela prefeitura de 62 mil habitantes, embora o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponte, com base em dados de 2010, um contingente populacional de 26.716. Em 2002, Canaã tinha 10 mil habitantes, diz Andrade. O primeiro salto populacional se deu depois que a Vale implantou no município o primeiro projeto da empresa, a mina de cobre do Sossego, que entrou em operação em 2004. Sossego gera royalties para Canaã. E com o S11D o município vai se tornar um dos maiores beneficiários de royalties da mineração do Brasil. "Devemos superar até Parauapebas", disse Andrade em referência ao município vizinho, do qual Canaã se emancipou em 1994.
A Vale informou que, desde a implantação da mina de Sossego, em 2004, pagou mais de R$ 446 milhões em impostos nos três níveis (União, Estado e município). O valor recolhido de royalties, entre 2008 e 2014, foi de R$ 183 milhões, considerando as três esferas de governo. "Por lei, o valor deve ser destinado a projetos em prol da comunidade local, na forma de melhoria da infraestrutura, da qualidade ambiental, da saúde e da educação. Canaã avançou em seus indicadores sociais nestes últimos 10 anos. Em 2013, o município teve o segundo melhor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do Pará", disse a Vale.
Como maior empregadora da região, a Vale reconhece que empreendimentos como o S11D, ao mesmo tempo em que aumentam a oportunidade para novos negócios e geram um grande número de vagas de emprego, podem gerar a indução de fluxos migratórios. "Considerando este cenário, a empresa investe no relacionamento com as comunidades e iniciativas de cunho social, por meio da Fundação Vale, desenvolve programas de qualificação de mão de obra, de empreendedorismo local, e investe em infraestrutura através de parcerias com o poder público".
O prefeito considera que as contrapartidas da Vale para o município precisam ser maiores. Uma questão que surge nesse debate é qual deve ser o papel da Vale, nas regiões onde atua, como provedora de infraestrutura, algo que a empresa tem feito ao longo das últimas décadas no sudeste do Pará. "Buscamos fazer uma aliança para o desenvolvimento da região. A filosofia não é adotar o papel do poder público, mas sempre estar junto, ser parceiro, e apoiar o que é de interesse público", diz Daniel Florenzano, gerente de relações com comunidades da Vale em Canaã.
Leonardo Neves, gerente de meio ambiente e sustentabilidade da Vale no município, afirma que a empresa ajuda os municípios onde está presente a montarem projetos que podem receber recursos do governo federal. Citou a elaboração de projeto enviado à Fundação Nacional de Saúde (Funasa) que garantiu à Prefeitura de Canaã dos Carajás repasse de verba federal de R$ 16,9 milhões, dinheiro que vai contribuir para a ampliação do sistema de captação e distribuição de água no município. Nessa iniciativa, o desembolso da Vale foi menos de R$ 500 mil.
Esse exemplo pode indicar uma tendência no atual momento vivido pela mineração, de baixa nos preços do minério de ferro. A Vale pode não entrar mais com o mesmo volume de recursos que aportou no passado como contrapartida aos seus projetos, priorizando parcerias que tragam para as cidades recursos de outras fontes, como do governo federal. No passado, a Vale colocou mais dinheiro como compensação social dos projetos. Em Sossego, a Vale investiu mais, proporcionalmente ao investimento no projeto, do que está fazendo agora com o S11D, dizem moradores de Canaã.
Para o economista Paulo Haddad, ex-ministro do Planejamento e da Fazenda no governo Itamar Franco, não se pode cobrar da empresa o que é de responsabilidade do governo, embora a Vale possa atuar em parceria com os municípios. Haddad, que foi consultor da Vale e de municípios no sudeste do Pará, considera que projetos como o S11D geram um grande "excedente econômico", fruto da diferença entre o custo de produção e o faturamento do projeto. Parte desse "excedente" fica no município na forma de impostos (ISS, royalties e cota parte do ICMS). Com a arrecadação, os municípios conseguem elevar a massa salarial e criam-se oportunidades diversas. Em Canaã, há projeto para dois shoppings. O problema, diz Haddad, é que historicamente há "malversação" desse "excedente econômico" por falta de competência administrativa. "Se fosse pegar tudo que foi gerado por Carajás em 30 anos, poderia ter se universalizado na região serviços de saúde, água e esgoto e educação".


Qualificação profissional é problema na região

O carpinteiro Antonio Ribeiro, 56 anos, de Presidente Dutra, no Maranhão, migrou temporariamente para Canaã dos Carajás, no Pará, no ano passado, onde trabalhou por alguns meses nas obras de implantação do projeto S11D, da Vale. "Trabalhei fazendo pilares para as correias de minério, contratado pela Andrade Gutierrez ", disse Ribeiro, sentado no banco de uma praça, no centro de Canaã. É possível ver no local, à sombra das árvores, migrantes que chegam ao município em busca de emprego.
Na semana antes do carnaval, Ribeiro se preparava para voltar ao Maranhão. "Com o dinheiro que ganhei, vou construir uma casa [em Presidente Dutra], mas pretendo voltar [para Canaã] em maio e tentar nova vaga." Foi a segunda vez que ele passou pelo município: na primeira não conseguiu "fichar". O termo é usado pelos trabalhadores para se referir à inscrição que precisam fazer na unidade local do Sistema Nacional de Emprego (Sine) antes de serem chamados para as obras do S11D.
O soldador Samuel Dutra, 31 anos, também maranhense, mas morador da vizinha Parauapebas, não teve a mesma sorte de Ribeiro. Antes do carnaval, tentava vaga nas obras do S11D, sem sucesso. As filas no Sine, afirmou, começam de madrugada e há trabalhadores que chegam com referências, o que torna o processo mais difícil.
Um problema nos municípios da região é que muitas vezes o trabalhador procura o Sine antes de passar por um processo de qualificação profissional, o que dificulta a seleção. A Vale tem parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) para qualificar trabalhadores para seus projetos na região. Magda Damasceno, gerente de edução, recrutamento e seleção da Vale no Pará, disse que 10 mil candidatos se apresentaram nos processos seletivos da empresa, em 2014, para preencher duas mil vagas em quatro municípios da região. Em alguns casos, a falta de qualificação faz com que uma vaga demore a ser preenchida. O tempo médio para se preencher uma vaga de eletricista, por exemplo, é de 120 dias.


Projeto tem inovações e dispensa barragem

O Projeto Ferro Carajás S11D, em desenvolvimento pela Vale no sudeste do Pará, concluiu a montagem dos 109 módulos que vão compor a usina de beneficiamento. Construídos em um canteiro de obras perto da área urbana de Canaã dos Carajás, os módulos estão sendo transportados por uma estrada de 45 quilômetros construída pela Vale até o terreno planejado para a usina, fora da Floresta Nacional de Carajás (Flona). Os módulos, com peso variável entre 50 toneladas e 1,3 mil toneladas, são transportados por um equipamento especial sobre rodas a uma velocidade de três quilômetros por hora, fazendo com que o tempo da viagem dure dois ou três dias. A operação é um desafio logístico.
"A ideia é transportar todos os módulos [até o local da usina] até o fim de 2015", disse Fernando Guimarães, líder de engenharia do S11D. A construção dos módulos da usina do S11D fora do terreno onde a unidade será montada, como se fosse um lego, foi uma das inovações do projeto. Essa técnica de modularização industrial foi copiada da indústria do petróleo e, no caso do S11D, permitiu à Vale avançar nos trabalhos enquanto a empresa não recebia a licença de instalação do Ibama, o que aconteceu em 2013. A construção da usina em módulos também reduziu o impacto do projeto nas proximidades da Flona.
Segundo a Vale, o investimento final no S11D, previsto para entrar em operação no segundo semestre de 2016, deve ser menor do que o esperado inicialmente. A empresa chegou a anunciar investimento de US$ 19,6 bilhões no projeto, mas a desvalorização do real e "otimizações devem fazer com que o investimento fique entre US$ 16 bilhões e US$ 17 bilhões.
O S11D foi desenhado para produzir 90 milhões de toneladas de minério de ferro a partir do fim do ano que vem. Ao entrar em funcionamento, a usina vai aumentar a produção de forma gradual, o que deve levar 36 meses até o último sistema "truckless" atingir a capacidade nominal. O "truckless" consiste em correias de grande capacidade (16 mil toneladas por hora) para transportar o minério da mina, que fica em um platô a 650 metros de altitude, em uma área de savana no meio da floresta, até a usina de beneficiamento, 9,5 quilômetros abaixo, em um declive de 250 metros. Esse sistema, apoiado em pilastras, vai substituir cerca de 100 caminhões fora de estrada.
No total, há quatro linhas de "truckless" que vão entrar em funcionamento em fases alternadas: haverá duas linhas de correias que vão enviar minério de ferro para a usina de beneficiamento. E outras duas vão transportar o chamado estéril (produto de menor teor de ferro) para uma área, também fora da floresta, em que irá se formar uma pilha com esse produto. Para cada tonelada de minério de ferro produzido pelo S11D, será preciso tirar, em média, 0,39 tonelada de estéril ao longo da vida útil do projeto, disse Alexandre Campanha, diretor de operações do S11D.
Além de substituir os caminhões fora de estrada pelo sistema "truckless" e de tirar da Flona a pilha de estéril, o S11D também prevê o beneficiamento a seco do minério de ferro, o que eliminou a necessidade de se construir uma barragem de rejeitos. O beneficiamento a seco ou a "umidade natural" é uma tecnologia desenvolvida e adaptada pela Vale ao minério de ferro de Carajás, com base em experiências da Austrália. Hoje a serra norte de Carajás, onde estão as primeiras minas da Vale a entrar em operação, também estão adotando o mesmo processo. Até 2018, esse sistema de beneficiamento deve estar presente em 100% dos sistemas de peneiramento da usina 1 do complexo minerador de Carajás. A usina 2, que está em fase de crescimento da produção, já opera nesses moldes.

Valor Econômico, 24/02/2015, Empresas, p. B3.

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