Amazônia de bike: entre igarapés e queimadas

O Globo, Esportes, p. 33 - 08/10/2017
Entre igarapés e queimadas
Amazônia de Bike
Astronauta americano se une a cientistas brasileiros e faz jornada de 1.100km, que cruza a floresta em 20 dias em meio a belezas naturais e degradação provocada por ação do homem

Eduardo Zobaran

São 536 os homens e mulheres no seleto grupo de viajantes que foram ao espaço. Um deles é o americano Chris Cassidy, que pode se orgulhar de outro feito: ele é o único entre seus companheiros astronautas a ter viajado de bicicleta por 20 dias em outro mundo repletos de mistérios: a Floresta Amazônica. Ao lado dos pesquisadores brasileiros Osvaldo Stella e Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), ele cruzou 1.100km em uma aventura de tirar o fôlego. Realizada em setembro, a viagem começou em Itaituba, no Pará, e terminou em Humaitá, no Amazonas.
Cassidy, que esteve duas vezes no espaço, em 2009 e 2013, espantou-se com o desafio físico encontrado:
- Foi longe de ser fácil. Adoro esportes de aventura e já disputei Ironman (triatlo em grandes distâncias), mas esse foi um dos maiores desafios porque todos os dias você tem que voltar para cima da bicicleta, e as inclinações não param de aparecer. Foi poeira, lama, calor, tudo aquilo que te faria desistir.
A escolha do trecho percorrido estava diretamente ligado à necessidade de ter uma amostra da diversidade amazônica.
- Na primeira parte, passamos por garimpo, mas logo entramos numa grande área preservada, o Parque Nacional da Amazônia, onde vimos a beleza da floresta. Os igarapés eram limpos, podíamos beber a água - contou Moutinho. - Quando você sai da área protegida, entra numa região de mineração. Os igarapés ficam imprestáveis para o consumo. Como limpam os barrancos, a água é leitosa. O calor era sensivelmente mais forte. À medida que saímos do garimpo, entramos em uma grande fazenda de pastagem, onde havia muita fumaça, que, inclusive, prejudica as chuvas. É comum queimadas para abrir a floresta, colocar gado e especular com a terra.
A viagem começou quando Chris esteve no Brasil em novembro do passado para um evento no Museu do Amanhã e visitas a escolas. Em um jantar, conheceu Stella, que há 25 anos havia atravessado a Amazônia de bicicleta. O cientista mostrou fotos no celular da viagem original, de 2.500 km em 52 dias. O astronauta deixou o recado: se o percurso fosse reeditado, ele toparia.

COM O PESO DA TECNOLOGIA
Não demorou para a dupla de cientistas avisar que a ideia estava de pé. Batizado de "Transmazon25", o projeto contou com ajuda de patrocinadores, inclusive uma empresa de tecnologia que permitiu registrar com exatidão o caminho percorrido (quadro acima). Uma realidade diferente da vivida em 1992.
- Naquela época, as únicas baterias que a gente levou foram as duas pilhas para um walkman - relembrou Stella. - Agora, foram câmeras de aventura, três computadores, um para cada, relógio, drone e celular. Uma parte significativa do que levamos, 15 kg para cada um, era o peso das baterias.
Outra diferença foram as bicicletas: na primeira vez, com aro de 26 polegadas; dessa, 29, e freio a disco. Eles percorreram a Rodovia Transamazônica, que, embora tenha trechos recheados de buraco, foi mais fácil de ser percorrida. Há 25 anos, algumas partes eram impossíveis de serem atravessadas pedalando.
- Em alguns momentos, você desce rápido e com muita carga para conseguir poupar na subida logo a frente. Elas são enormes. Se não embalar no começo, dobram de tamanho - ensinou Stella. - Todo dia fazíamos manutenção nas bikes.
Outra dificuldade foi o clima seco. Sem uma chuva sequer, a estrada quase sem lama foi mais fácil de ser transitada, mas o excesso de poeira se transformou em mais um obstáculo.
- Era uma poeira muito fina, que parecia talco. O chão parece liso, mas, quando você passa, é uma piscina de talco. Às vezes, afundávamos dois palmos. Vimos vários carros e motos atolados - contou Stella.
Durante a viagem do grupo, a britânica Emma Kelty foi assassinada no Amazonas enquanto fazia uma travessia solitária de caiaque no Rio Solimões. Um fato triste que reforçou a preocupação com segurança.
- Nós viajamos em três, sendo que duas pessoas tinham extenso conhecimento da área. Isso nos ajudou, mas há situações em que você não está preparado - lamentou Cassidy, que teve que conviver com outros perigos. - Ouvimos tantas histórias de onças e jaguares que cheguei a acordar e ouvir um barulho quando fui ao banheiro, mas talvez fosse só minha imaginação.

'É PRECISO PRESERVAR'
Os três ciclistas são da mesma faixa etária. Cassidy, o mais jovem, tem 47. Stella, 49, e Moutinho, 55. Todos descreveram dias ruins na viagem.
- Você tem que se acostumar a tomar água de igarapé e a comer em lugares com pouca higiene. A quantidade de esforço físico era brutal, e a condição de dormir nem sempre era a melhor, armamos redes de selva em casas abandonadas. Essa combinação de ambiente hostil, alimentação e hidratação precárias sem tempo de recuperação exige que todo mundo esteja não só preparado, mas resiliente. Todos tivemos dias ruins, mas ninguém jogou a toalha - descreveu Stella.
Muito além das belezas naturais, foi o contato com as pessoas (indígenas, fazendeiros e até garimpeiros) que deixou o trio otimista sobre a região, que classificam como um "almoxarifado do país", mas esquecido em investimentos.
- A gente viu pessoas simples que vivem na Amazônia e que poderiam ser incluídas em um processo econômico mais virtuoso. A falta de alternativas mantém os status quo há 25 anos, estabelecendo um uso da floresta com atividades que concentram renda. Queremos provar que existem alternativas econômicas, mas é preciso preservar a floresta - ressaltou Moutinho.

O Globo, 08/10/2017, Esportes, p. 33

https://oglobo.globo.com/esportes/entre-igarapes-queimadas-uma-jornada-de-bicicleta-pela-amazonia-21921920
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