Tribos temem que PEC dificulte ainda mais demarcação

O Globo, País, p. 6 - 16/11/2015
Tribos temem que PEC dificulte ainda mais demarcação
Pressão dos ruralistas pode aumentar se o Congresso puder homologar terras

Juliana Castro

PARATY - De sua rede, o cacique Karai Tatati (ou Miguel Benite, para os brancos) observa sua tribo. Com olhos amendoados e fiapos de pelo no lugar do bigode, seu rosto não denuncia os quase 116 anos que garante ter. É com essa experiência de vida que o cacique avalia um projeto que tramita tão longe dele, em Brasília, mas que o atinge bem ali, naquela imensidão verde, assim como afeta seus pares entranhados na Amazônia ou em qualquer outra parte do país.
- Esse projeto não vai ser bom para a gente, não - diz o cacique, pai de oito filhos e avô de tantos netos que até já parou de contar.
O projeto ao qual Miguel Benite se refere é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de número 215, protocolada em 2000. O texto muda o rito de demarcação de terras. Na prática, tira das mãos do presidente da República o poder de homologar as áreas indígenas e o repassa ao Congresso. Com isso, os índios temem sair perdendo para a bancada ruralista. O receio é que a pressão de fazendeiros impeça, atrase e diminua as demarcações. A Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que 241 áreas que estão nas fases que antecedem a homologação podem ser afetadas se o projeto passar no Congresso. A questão pode ir parar no Supremo Tribunal Federal (STF).
Depois de 15 anos parado, o texto foi aprovado por 21 votos a zero na comissão especial. A aprovação definitiva depende de dois turnos de votação na Câmara e no Senado, com os votos de, pelo menos, 308 deputados e 49 senadores. Com ou sem a Funai, as tribos não têm ficado de braços cruzados e se organizam para enfrentar a batalha contra a PEC.
No Estado do Rio, quatro aldeias podem ser afetadas. Todas ficam em Paraty, no Sul Fluminense, e são da etnia Guarani. O GLOBO visitou duas delas: a Aldeia Itaxe Mirim, do cacique Miguel Benite, às margens da Rodovia Paraty-Mirim, e a Tekoha Jevy, na Serra da Bocaina. A primeira está a 16 quilômetros do Centro de Paraty, e a segunda, a 25 quilômetros de via asfaltada, quatro de chão e mais uma trilha. As duas convivem com TVs e celulares, mas preservam um dos traços mais marcantes de sua cultura: a língua. Entre eles, só se fala em guarani.
Na aldeia em Paraty-Mirim há casas com antenas de TV e celular, mas internet só mesmo em lan houses. É em uma delas, no Centro de Paraty, que Ivanilde Pereira da Silva vai semanalmente. Ela paga R$ 3 por uma hora de internet. No Facebook, lideranças indígenas mantêm um grupo em que trocam informações sobre o projeto e se articulam. Agora, planejam até ir a Brasília. Ivanilde acompanha também notícias de outras tribos em estão em conflito com fazendeiros.
- Dizem que o índio que anda com roupa não é índio, e não é isso. Saber o que você é e de onde você veio é o que preserva a sua cultura - afirma Ivanilde.
A aldeia do cacique Miguel Benite e de Ivanilde foi homologada em 1996, quando apenas cinco famílias moravam no local. A tribo aumentou, nasceram os filhos dos filhos e, hoje, há cerca de 180 pessoas distribuídas em 48 famílias. Há três anos eles solicitaram a ampliação da terra, pois não há mais espaço para construir casas e plantar. O terreno é íngreme e com muitas pedras.
A PEC proíbe a ampliação dos limites de uma terra já demarcada. Quando uma tribo faz o pedido, precisa passar novamente por todo um processo para a homologação. Por outro lado, na versão anterior do projeto, todas as demarcações já existentes seriam revistas. Este ponto foi retirado.
Embrenhada no meio da Serra da Bocaina, a aldeia Tekoha Jevy, com 33 índios, deu início ao processo para a demarcação em 2008, mas até hoje não conseguiu passar nem da primeira fase.
- O país é tão grande, por que querem tirar as terras dos índios? - pergunta Neusa Taquá, de 26 anos, que representa a tribo nos encontros com outras aldeias da região.
Mesmo ali, no alto da serra, os índios têm televisão e pagam R$ 100 pelo acesso à internet. É assim que Neusa acompanha a tramitação da PEC e foi como soube da votação do relatório, de autoria do deputado federal Osmar Serraglio (PMDB-RS), na comissão especial.
Em entrevista ao GLOBO, o peemedebista disse que os parlamentares buscaram apenas regulamentar uma decisão do STF. No entendimento de Serraglio, em julgamento sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol (RR), a Corte decidiu que só as tribos que estivessem na terra em 1988 poderiam pleitear a homologação. A Funai discorda. Diz que o entendimento é apenas para o caso analisado e não para as demais terras indígenas. E que, além disso, muitos índios foram removidos de suas terras e tiveram de se fixar em outro lugar. Mas, se o objetivo era apenas regulamentar uma decisão do Supremo de demarcar terras ocupadas antes de 1988, por que os deputados passaram o poder do Executivo para os congressistas?
- Porque o Executivo não obedece ao Supremo. A Funai não obedece ao Supremo - explica o deputado.
O relator acrescenta que, sem o marco, um grupo de índios pode ocupar uma área qualquer e pedir demarcação. Ele afirma que a PEC "é um contraponto aos segredos da Funai" e que os processos ficarão mais transparentes. Serraglio garante que não haverá lentidão nas demarcações porque elas terão o rito de medida provisória:
- Deixem de ser manipulados pela Funai e vejam que a PEC está lhes dando segurança jurídica. Não haverá engavetamento - diz aos índios.
Neusa Taquá diz não acreditar que a PEC traga benefícios:
- Estão votando contra nossa vida, e nós estamos rezando para isso não acontecer. A lei de Deus é muito maior.

O Globo, 16/11/2015, País, p. 6

http://oglobo.globo.com/brasil/indios-entram-em-alerta-contra-mudanca-em-regra-de-demarcacao-18058559
Índios:Terras/Demarcação

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