'O parque da Serra da Capivara pode virar uma terra de ninguém', diz arqueóloga que dedicou vida ao local

O Globo, Sociedade, p. 23 - 14/06/2018
'O parque da Serra da Capivara pode virar uma terra de ninguém', diz arqueóloga que dedicou a vida ao local'
Niède Guidon diz que instituição só tem recursos para manutenção até o fim do ano

RIO- Arqueóloga, Niède Guidon dirige a Fundação Museu do Homem Americano e revela a penúria do Parque Nacional Serra da Capivara (Piauí), que só tem recursos para manutenção até o fim do ano. Com a saúde debilitada aos 85 anos, pioneira pensa em se aposentar

O Parque da Serra da Capivara é uma área de proteção ambiental com mais de mil quilômetros quadrados e 900 sítios arqueológicos com pinturas rupestres. Como proteger um patrimônio desse porte?

Não temos o número suficiente de funcionários. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que é responsável pelo parque nacional, e o Iphan, que cuida dos sítios de arte rupestre, contam com dois ou três agentes. Outros 180 pertencem à Fundação Museu do Homem Americano, mantenedora da unidade. São moradores locais que precisam dividir-se entre atividades como cuidar de postos de vigilância, manter estradas e servir como guias turísticos, além de especialistas que evitam que animais e vazamentos de água destruam as pinturas. Poucos anos atrás, eram 270 funcionários, mas este efetivo teve de ser reduzido quando o governo mudou a lei de compensação ambiental. Antes, as empresas que prejudicavam o meio ambiente podiam destinar um valor (como compensação) diretamente para nós. Agora, essa verba é repassada à União e acaba sumindo em Brasília.

Quais são os principais obstáculos para o turismo na região?

Um deles é o Aeroporto Internacional da Serra da Capivara, um projeto de 1997 que só foi inaugurado em 2015. Como ele só tem uma pista e não foi instalado um posto de combustível, não pode receber grandes aviões. Em qualquer lugar do mundo, há um aeroporto expressivo ao lado de patrimônios da Humanidade, além de hotéis de cinco ou seis estrelas. Aqui, os melhores têm duas. O noticiário internacional também nos afeta. As notícias sobre o Brasil que chegam aos meios de comunicação estrangeiros são terríveis. A violência e a corrupção reduziram o número de turistas. Resultado: em 2015, recebemos 26 mil visitantes. No ano seguinte, 16 mil.

O brasileiro conhece a Serra da Capivara?

Não. A população não sabe o que é este patrimônio, que é descrito em revistas especializadas como a maior galeria de arte das Américas, e que já foi tema de exposições em cidades como Berlim, Copenhague, Paris e Londres. Visitei um parque australiano que tinha apenas quatro sítios arqueológicos, e cada um com só meia dúzia de pinturas rupestres, mas que ganha US$ 50 milhões do governo, tem 400 funcionários e milhões de visitantes.

Qual é o orçamento do parque?

Não temos um valor fixo. Estamos com receita garantida até outubro. Agora, esperamos a liberação de verbas emergenciais pela União, que vamos obter graças a uma ação judicial da OAB, e com isso vamos nos manter até o final do ano. Mas não sei como o parque poderá ser sustentado em 2019. Sem dinheiro, precisaremos demitir funcionários, e os caçadores terão entrada livre neste patrimônio. O parque pode virar uma terra de ninguém.

Ainda assim, a unidade vai inaugurar uma nova atração em dezembro, o Museu da Natureza. Quais serão suas atividades?

Este projeto foi viável graças a um financiamento do BNDES. Será dedicado a pesquisas interdisciplinares, que analisarão, por exemplo, fósseis de grandes animais que viveram na região até dez mil anos atrás, como preguiças gigantes e mastodontes. Também mostraremos as modificações ambientais da região que, milhões de anos atrás, era banhada pelo mar. Depois, movimentos das placas tectônicos ergueram a serra, que em seu topo passou a ter a floresta amazônica e, na planície, a Mata Atlântica. Com as mudanças climáticas, estes biomas deram lugar ao Cerrado e à Caatinga.

A senhora foi ameaçada de morte ao resistir à ação de caçadores próximo ao parque. Como lidou com isso?

Denunciei uma pessoa ao Iphan por exploração de trabalho escravo, e sua principal atividade era a exploração de calcário dos sítios. Quando descobri o autor da ameaça, fui até a casa dele e disse: "Eu sei que você está contratando alguém para me matar, e eu sei que você vai conseguir. Mas já falei com os meus amigos do Rio e, se acontecer alguma coisa comigo, eles vêm aqui e matam você e sua família". Pronto, acabou. Nunca mais disseram nada.

A senhora tem 85 anos. Pensa em se aposentar?

Liderei pesquisas francesas na Serra da Capivara e sou professora aposentada pelo governo da França desde os 60 anos. Não precisava mais trabalhar. Mas tive chicungunha em 2016 e agora estou com um problema grave de saúde, que me impede de ir diariamente para o parque para cumprir minhas atividades rotineiras. Faço todo o meu tratamento em São Paulo e, como a região do parque não tem um aeroporto estruturado, preciso encarar 400 quilômetros de estrada para chegar até outros, o que provoca dores nas articulações.

A senhora se tornou um símbolo do parque. Pretende ficar perto?

Ainda vou ver o que posso fazer. Por enquanto, tudo o que tenho está em São Raimundo Nonato (uma das cidades que abriga o parque nacional): meus seis cachorros, meus três gatos. Mas a fundação que mantém este patrimônio tem professores e doutores que estão completamente capacitados para continuar o trabalho. Temos tudo organizado para que o trabalho mantenha sua qualidade. Não precisam mais de mim.

https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/o-parque-da-serra-da-capivara-pode-virar-uma-terra-de-ninguem-diz-arqueologa-que-dedicou-vida-ao-local-22777427

O Globo, 14/06/2018, Sociedade, p. 23
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